28 de outubro de 2016

Burocratizando a Vida Cristã


"Eu lhes afirmo que está chegando a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que a ouvirem, viverão." João 5.25

Data de protocolo, formulário a ser preenchido com letra de forma e sem rasuras, entregar em três vias, anexar foto 3x4, assinar três vezes e apor a impressão digital do polegar direito... Todo mundo já está bem familiarizado com repartições públicas, concursos, editais, inscrições ou qualquer outra coisa que demanda burocracia. Alguns são tão viciados nesse tipo de coisa que têm até a sua própria forma burocrática de ver o cristianismo e a vida cristã.

Quando você se converteu? Quando você se batizou? Quem são seus pais na fé? Você é membro de uma igreja que batiza por aspersão ou por imersão? Quem assinou seu certificado de batismo? ... Espere aí, isso é uma entrevista para emprego? Para um visto de permanência em país estrangeiro?

Já ouvi muita gente que consegue fazer um histórico detalhado de sua própria vida cristã. E talvez porque muitos consigam lembrar detalhes dessas coisas e os mencionam sempre que falam de si, eu cheguei a pensar que eu precisava mesmo detalhar toda a minha história, registrar todas as datas para que eu pudesse gozar da certeza de ser convertido. Às vezes o convívio com pessoas mais aparentemente seguras cria em nós esta mentalidade meticulosa. E nossos pecados sucessivos pioram as nossas dúvidas. Se realmente me converti, por que não lembro a data especificamente? Isso me afligiu por um tempo.

Eu já passei por crises de identidade assim. Eu não sei em que dia eu me converti de verdade porque para mim isto foi um longo processo. Não me converti num sistema de reação instantânea em cadeia do tipo: “pecador-inconsciente-sai-de-casa-um-dia; culto-com-louvorzão; pregação-emocional; apelo-pelo-amor-de-Deus-alguém-aqui-aceita-Jesus!; levanta-a-mão-visitante!; olha-ele-igreja!; palmas-glória-a-Deus!; oração-perdoa-ele!; ele-está-salvo!; pecador-remido-em-casa”.

Pelo contrário. Eu levei anos observando, questionando e refletindo. Mas lembro que, na minha inocência, eu achava que levantar a mão e ir à frente numa igreja para dizer que "aceitei Jesus" era a segunda parte da burocracia necessária para a salvação que eu achava que havia em Romanos 10.9-10:

"Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo. Pois com o coração se crê para justiça, e com a boca se confessa para salvação."

Tanto que cheguei até a combinar com amigos crentes para ir aceitar Jesus na igreja deles, muito embora até hoje eu não saiba se a primeira parte (crer) ocorreu antes ou após o evento (mas meu palpite é que tenha sido bem antes, né?). De uma coisa eu sou bem certo, apesar das minhas mancadas e pecados, eu sou cristão.

Alguns pensam que a conversão precisa ser feita num templo só porque aparentemente a maioria das conversões se dá em cultos públicos. Mas não podemos conhecer corações de pessoas só porque elas vão à frente, dão testemunho, se batizam ou atendem a um apelo evangelístico. E isto justamente porque a conversão é um ato invisível: é uma ação vivificadora do Espírito Santo na vida de uma pessoa que estava morta em delitos e pecados, e que estava em franca rebelião contra Deus e sob a ira d'Ele*

"Mas quando se manifestaram a bondade e o amor pelos homens da parte de Deus, nosso Salvador, não por causa de atos de justiça por nós praticados, mas devido à sua misericórdia, ele nos salvou pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós generosamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador." Tito 3.4-6

É difícil para algumas pessoas se lembrarem de quando e como isso aconteceu porque muitas vezes a conversão, como no meu caso, é um processo difícil de pontuar no tempo. Uma progressiva mudança de mente, uma crescente atração por Deus, um desapego de tudo por algo maior e inexplicável. Como podemos sondar o Espírito de Deus e medir seus misteriosos caminhos em nós?

O fato é que estávamos mortos, e Deus nos fez acordar para a vida. Simples. De repente começamos a produzir frutos divinos, mas não sabemos quando eles nasceram ou amadureceram pela primeira vez. Assim, não importa quando nascemos de novo, pois, sendo a salvação eterna, sua data se perderá no tempo. Que bom que muitas pessoas conseguem se lembrar do dia em que ouviram a voz do Mestre pela primeira vez! Eu não. O que sei, com toda certeza, é que eu estava morto, e Sua voz me trouxe vida; e que eu já não consigo mais imaginar a vida sem essa voz tão doce.

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* Outros detalhes sobre isso podem ser encontrados na Epístola aos Efésios, capítulo 2.

24 de agosto de 2015

Reencontro

Tem uma musica com uma letra um tanto questionável que vez ou outra me faz refletir sobre Deus ("One of Us", Joan Osborne). E se Deus se mostrasse a você? E se ele se mostrasse de um modo diferente do que você espera?

Várias vezes nas Escrituras, o temível Deus que envia raios e fala nas chamas com voz de trovão, Aquele que vestiu-se de carne e nasceu, mesmo tendo sempre existido e sido o mesmo, surpreendeu até mesmo aqueles que viviam em sua intimidade (João 1.18).


E se Deus fosse como um de nós ao encontrar você? Você o reconheceria? Eu me pego a pensar sobre isso de vez em quando. Não que eu espere ver o rosto do Todo-Poderoso "Eu Sou" pelas ruas da cidade, gritando alto no meu ouvido para se sobrepor ao som do tráfego intenso.

Mas surpreende-me pensar que o profeta Elias encontrou o dono do céu e da terra, o Senhor dos reis da terra, na porta de uma caverna do deserto, diferentemente do que ele esperava, num sussurro ao vento.

Espanta-me que Maria Madalena, no jardim onde antes estava sepultado Jesus, aquele que é a Vida e que venceu o poder da morte, tenha tomado Este, a quem tanto amava, por quem derramava lágrimas entre soluços de aflição, pelo coveiro que cuidava dos sepulcros.

Como os discípulos que retornavam desconsolados para Emaús, pensando no Profeta que fora morto, Aquele em quem haviam posto sua esperança, cuja doce voz os guiara por muito tempo, cujo pão saciou muitas vezes não apenas o vazio de seus estômagos mas também o de seus corações... Como puderam não reconhecê-lO enquanto lhes falava uma vez mais, conversando pelo caminho na volta para casa? (Lc 24.13-35)

Como eu me sentiria na pele de Filipe se, depois de três anos seguindo Aquele que um dia me chamou, tão humilde que sua simplicidade ocultava toda a sua glória divina... Como me sentiria diante de sua resposta ao meu pedido "mostra-nos o Pai"... Naquele momento, ao ouvir Aquele cujos passos se juntavam aos meus nas empoeiradas ruas de Israel, me responder que eu já havia contemplado e conhecido o Pai todas as vezes que olhei para o Seu próprio rosto? (João 14.1-9)

"E nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido", mestre, "glutão e bebedor de vinho", hippie, comunista, revolucionário do amor... "filho do carpinteiro", "salvador do mundo", quebrador do sábado, louco... Enfim, se no Servo não havia beleza que nos atraísse, se Ele era tudo o que nós não esperávamos, não admira que Jesus tenha nos ensinado que todas as nossas atitudes para com o menor de seus pequeninos eram contadas como feitas a Ele mesmo. Admira, sim, que não aprendamos essa lição! Que uma música não cristã despretensiosa possa levar-me a pensar sobre esse ensino do Mestre. "Deus está, mas não apenas, nos detalhes", como diria um amigo meu. (Isaías 53; Mateus 11.19; Marcos 6.3; João 4.42 ... Mateus 25.40)

A intimidade com Deus sempre surpreende.

Já pensou, entre as nuvens do céu, quando nada mais importa, nenhuma distração pode lhe assaltar, quando luz alguma pode atrapalhar sua clara visão nem barulho ensurdecê-lo, como na tranquilidade de um mergulho iluminado, você de repente contemplá-lO e dizer: "Já nos vimos antes, não?"; E Ele lhe responder, "Não diria que uma vez apenas. Mas sempre fiquei feliz quando nos encontramos. Mesmo no ônibus lotado na volta para casa."?

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