14 de dezembro de 2009

Cantorino

Estava escrevendo uma pauta para descontrair, e saiu um conto de Natal. O protagonista é ficcional e, com certeza, lembra alguém ou coisas que você já viu. Talvez vire uma série de contos com outros personagens. Talvez não. Peço que enviem sugestões e críticas.


Cantorino era um crente muito alegre, ele adorava louvar. Todo culto era um número especial, um momento inesquecível, irrepetível, tanto para os de sempre quanto para os visitantes.


"Louvor era ação. Ensaio era procrastinação." Instrumento às vezes atrapalhava. O homem era pura atitude. Ele não sabia o que era tom, melodia e ritmo, só o que era louvor. "E música é exaltação, é glória." Nota, para ele, era só Promissória ou de dinheiro. Desafinava, mas não desistia jamais.


O irmão adorava cantar no chuveiro, e no quarto, com a janela aberta para o muro alto (ele cantava na parte de cima do sobrado), no lajão e até na rua. Graças à sua voz potente e falta de musicalidade, dois gatos foram mais cedo, alvos mais que a neve, caminhar nas nuvens: atingidos de cheio por sua voz impactante e imbatível – eles caíram do muro e partiram para a glória felina. Os cachorros, com medo, já não passavam mais na rua: eles achavam que aquilo sempre acontecia quando eles passavam perto do lixo de Cantorino.


Os irmãos sempre usavam a desculpa de que não o ouviriam para que o ego do irmão não aumentasse. Mas não tinha jeito, culto é culto, e não poderiam sair do templo enquanto cantorino entregava seu louvor.


Nos primeiros versos entoados, viam-se semblantes de angústia, mãos trêmulas segurando os bancos, gente olhando para a porta como quem contemplava o fulgor dos portões do paraíso. O mero anúncio de que Cantorino se apresentaria a seguir levava muitas mãos aos rostos, cabeças a abaixarem-se e testas a se franzirem... E algumas vozes se alçavam em efeito dominó: “Volta, Senhor Jesus! Corre, Jesus, volta!” – e Cantorino ficava grato a Deus, porque a sua pessoa inspirava nos irmãos o desejo ansioso de todos pela vinda do Senhor (Para ele, humilde que era, isso era quase um avivamento em miniatura: mais um motivo para um servo cantar de alegria!).


Cantorino era ingênuo e doce, sempre pensava o melhor das pessoas. Mas os seus ouvintes não podiam mandar nos próprios sentimentos: a consciência pesava, dava vontade de rir e dava vontade de chorar a cada canção do entusiasmado cantador.


Quase esqueci de dizer que ele também tocava gaita – mal pacas! – diga-se de passagem. Uma vez ele foi tocar “Oh, tão cego eu andei e perdido vaguei longe, longe do meu Salvador”. O debate sobre a a música durou umas três semanas: os jovens argumentavam que era “Brilhando, brilhando, quero brilhar como a luz”, os demais ficaram divididos entre Castelo Forte e algum remix acelerado de “Manso e suave Jesus convidando”. Enfim, como ninguém conseguiu chegar a um consenso, inclusive as crianças começaram a defender que era “Pecado, pecadinho, pecadão”, optaram por deixar o assunto para o Tribunal de Cristo, pois nem Cantorino lembrava mais que cântico era para resolver, tamanho era o seu repertório instrumental.


O mais engraçado era que os hinos que ele tocava de gaita, principalmente os de cinco estrofes melodicamente iguais, careciam ser tocados por inteiro, e não dava pra saber em que estrofe ele estava porque a gente se perdia na contagem (não podíamos tapar discretamente os ouvidos e segurar o Cantor Cristão ao mesmo tempo pra contar).


Até que um dia, extasiado, cintilando, ele decide que apresentará uma cantata de Natal: uma cantata de um homem só... com uma hora de duração! O anúncio desabou meteoricamente num culto de domingo à noite, com igreja em peso, e ninguém ousaria contestar Cantorino em sua inocência.

E se você quiser saber como este conto termina, fique atento ao blog. A segunda e última parte virá em breve! ; )

2 comentários:

Eli Barbosa disse...

Hehehehehehehe...esse Cantorino quanto desafi..ops quero dizer quanta inocencia.
Muito bom e engraçado esse post,vou ficar atenta esperando a segunda parte...antes que Cantorino solte sua bela voz.
Abraços
Eli

Anônimo disse...

"dois gatos foram mais cedo, alvos mais que a neve, caminhar nas nuvens"
kkkkkkkkkkkkkkk
Muitoooooo engraçado, Avelar. Espero anciosa pela continuação...

Em Cristo,
Débora Silva Costa
http://ferazao-bang.blogspot.com/

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